HUMBERTO DE CAMPOS

NOSSO PATRONO: HUMBERTO DE CAMPOS



Biografia
(Texto extraído do site da Academia Brasileira de Letras: http://www2.academia.org.br/ )

Terceiro ocupante da Cadeira 20 da ABL, eleito em 30 de outubro de 1919, na sucessão de Emílio de Menezes e recebido pelo Acadêmico Luís Murat em 8 de maio de 1920.

Humberto de Campos (H. de C. Veras), jornalista, crítico, contista e memorialista, nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro de 1934.

Foram seus pais Joaquim Gomes de Faria Veras, pequeno comerciante, e Ana de Campos Veras. Perdendo o pai aos seis anos, Humberto de Campos deixou a cidade natal e foi levado para São Luís. De infância pobre, desde cedo começou a trabalhar no comércio como meio de subsistência. Dali, aos 17 anos, passou a residir no Pará, onde conseguiu um lugar de colaborador e redator na Folha do Norte e, pouco depois, na Província do Pará. Em 1910 publicou seu primeiro livro, a coletânea de versos intitulada Poeira, primeira série. Em 1912 transferiu-se para o Rio. Entrou para O Imparcial, na fase em que ali trabalhava um grupo de escritores ilustres, como redatores ou colaboradores, entre os quais Goulart de Andrade, Rui Barbosa, José Veríssimo, Júlia Lopes de Almeida, Salvador de Mendonça e Vicente de Carvalho. João Ribeiro era o crítico literário. O diretor José Eduardo de Macedo Soares participava da segunda campanha civilista. Humberto de Campos ingressou no movimento. Mas logo depois o jornalista militante deu lugar ao intelectual. Fez essa transição com o pseudônimo de Conselheiro XX com que assinava contos e crônicas, hoje reunidos em vários volumes. Assinava também com os pseudônimos Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Em 1923, substituiu Múcio Leão na coluna de crítica do Correio da Manhã.

Em 1920, já acadêmico, foi eleito deputado federal pelo Maranhão. A revolução de 1930 dissolveu o Congresso e perdeu o mandato. O presidente Getúlio Vargas, que era admirador do talento de Humberto de Campos, procurou minorar as dificuldades do autor de Poeira, dando-lhe os lugares de inspetor de ensino e de diretor da Casa de Rui Barbosa. Em 1931, viajou ao Prata em missão cultural. Em 1933 publicou o livro que se tornou o mais célebre de sua obra, Memórias, crônica dos começos de sua vida. O seu Diário secreto, de publicação póstuma, provocou grande escândalo pela irreverência e malícia em relação a contemporâneos.

Autodidata, grande leitor, acumulou erudição, que utilizava nas crônicas. Poeta neoparnasiano, fez parte do grupo da fase de transição anterior a 1922. Poeira é um dos últimos livros da escola parnasiana no Brasil. Fez também crítica literária de natureza impressionista. É uma crítica de afirmações pessoais, que não se fundamentam em critérios e, por isso, não podem ser endossadas nem verificadas. Na crônica, seu recurso mais corrente era tomar conhecidas narrativas e dar-lhes uma forma nova, fazendo comentários e digressões sobre o assunto, tecendo comparações com outras obras. No fundo ou na essência, não era uma crítica profunda, que não resiste ao tempo.



Bibliografia
(Texto extraído do site da Academia Brasileira de Letras: http://www2.academia.org.br/ )

Poeira, poesia, 2 séries (1910 e 1917); Da seara de Booz, crônicas (1918); Vale de Josaphat, contos (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); Mealheiro de Agripa, vária (1921); Carvalhos e roseiras, crítica (1923); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); Grãos de mostarda, contos (1926); Alcova e salão, contos (1927); O Brasil anedótico, anedotas (1927); Antologia da Academia Brasileira de Letras (1928); O monstro e outros contos (1932); Memórias 1886-1900 (1933); Crítica, 4 séries (1933, 1935, 1936); Os países,(1933); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934); Sombras que sofrem, crônicas (1934); Um sonho de pobre, memórias (1935); Destinos,(1935); Lagartas e libélulas, (1935); Memórias inacabadas (1935); Notas de um diarista, 2 séries (1935 e 1936); Reminiscências, memórias (1935); Sepultando os meus mortos, memórias (1935); Últimas crônicas (1936); Perfis, 2 séries, biografias (1936); Contrastes, (1936); O arco de Esopo, contos (1943); A funda de Davi, contos (1943); Gansos do capitólio, contos (1943); Fatos e feitos, (1949); Diário secreto, 2 vols. (1954)


Fato curioso: A polêmica gerada sobre obras de Humberto de Campos psicografadas por Chico Xavier
(Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre)

É polêmica antiga no meio jurídico o valor probatório da psicografia. O caso mais famoso indubitavelmente foi o de Humberto de Campos. A partir de 1937, três anos após a morte de Campos, várias crônicas e romances atribuídos ao escritor começaram a ser psicografados. Entre as obras, todas editadas pela Federação Espírita Brasileira, a de maior notoriedade entre os espíritas brasileiros foi: Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho - psicografada pelo médium Chico Xavier. No ano de 1944, a viúva de Humberto de Campos ingressou em juízo, movendo um processo contra a Federação Espírita Brasileira e Francisco Cândido Xavier, no sentido de obter uma declaração, por sentença, de que essa obra mediúnica "era ou não do 'Espírito' de Humberto de Campos", e que em caso afirmativo que ela tivesse os direitos autorais da obra. O assunto causou muita polêmica e, durante um bom tempo, ocupou espaço nos principais periódicos do País. A Autora, D. Catarina Vergolino de Campos, foi julgada carecedora da ação proposta, por sentença de 23 de agosto de 1944, do Dr. João Frederico Mourão Russell, juiz de Direito em exercício na 8º Vara Cível do antigo Distrito Federal. Tendo ela recorrido dessa sentença, o Tribunal de Apelação do antigo DF manteve-a por seus jurídicos fundamentos, tendo sido relator o Ministro Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa.


Alguns textos do autor:


POEIRA...

Poeira leve, a vibrar as moléculas: poeira
Que um pobre sonhador, à luz da Arte, risonho,
Busca fazer faiscar: pó, que se ergue à carreira
Do Mazepa do Amor pela estepe do Sonho.
Para ver-te subir, voar da crosta rasteira
Da terra, a trabalhar, todas as forças ponho:
E a seguir teu destino, enlevada, a alma inteira
O teu ciclo fará, seja suave ou tristonho.
Não irás, com certeza, alto ou distante. O insano
Pó não és que, a turvar o céu claro da Itália,
Traz o vento, a bramir, do Deserto africano:
Que és o humílimo pó duma estrada sem povo,
Que, pisado uma vez, pelo ambiente se espalha,
Sente um raio de Sol, cai na terra de novo.

(Poeira, 1ª série, 1910.)



NIRVANA

Viver assim: sem ciúmes, sem saudades,
Sem amor, sem anseios, sem carinhos,
Livre de angústias e felicidades,
Deixando pelo chão rosas e espinhos;
Poder viver em todas as idades;
Poder andar por todos os caminhos;
Indiferente ao bem e às falsidades,
Confundindo chacais e passarinhos;
Passear pela terra, e achar tristonho
Tudo que em torno se vê, nela espalhado;
A vida olhar como através de um sonho;
Chegar onde eu cheguei, subir à altura
Onde agora me encontro - é ter chegado
Aos extremos da Paz e da Ventura!

(Poeira, 1ª série, 1910.)


A FUNDA
(SALVADOR RUEDA)

O verso é a funda de uma idéia. À teia
Dos fios trá-la, sem calhaus, pendida;
Mas, se a tomares, que lhe emprestes vida,
E a tornes digna da atenção alheia.
Funda é o verso. Faiscando, balanceia
No ígneo cérebro a pedra encandescida;
E ao futuro, de súbito impelida,
Caminhando veloz, relampagueia.
O verso é a funda que uma idéia lança.
A pedra passa pela nossa frente
E no giro dos séculos não cansa.
E tu, que és perta e sonhador austero,
Lembra as pedras em funda resistente
Alto lançadas pela mão de Homero!

(Poesias completas, 1933.)



TEMPESTADE AMAZÔNICA


O calor asfixia e o ar escurece. O rio,
Quieto, não tem uma onda. Os insetos na mata
Zumbem tontos de medo. E o pássaro, o sombrio
Da floresta procura, onde a chuva não bata.
Súbito, o raio estala. O vento zune. Um frio
De terror tudo invade... E o temporal desata
As peias pelo espaço e, bufando, bravio,
O arvoredo retorce e as folhas arrebata.
O anoso buriti curva a copa, e farfalha.
Aves rodam no céu, num estéril esforço,
Entre nuvens de folha e fragmentos de palha.
No alto o trovão repousa e em baixo a mata brama.
Ruge em meio a amplidão. Das nuvens pelo dorso
Correm serpes de fogo. E a chuva se derrama...

(Poesias completas, 1933.)


OS HIPERBÓREOS

Cabeça erguida, o céu no olhar, que o céu procura,
Baixa o humano caudal, dos desertos de gelo...
Em farrapos, ao sol, derrete-se a brancura
Da neve boreal sobre o ouro do cabelo.
Ulula, e desce; e tudo invade: a atra espessura
Dos bosques entra, a urrar e a uivar. E, uivando, pelo
Continente, a descer, ganha a úmida planura,
E a brenha secular, em sonoro atropelo.
Assustam-se os chacais pelas selvas serenas.
A turba ulula, o druida canta, enchendo os ares.
Entre os uivos dos cães e o grunhido das renas...
Escutando o tropel, rincha o poldro, e galopa.
Derrama-se, a rugir, das geleiras polares,
A semente feraz dos Bárbaros, na Europa...

(Poesias completas, 1933.)



UM AMIGO DE INFÂNCIA


No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas unidas e avermelhadas, as quais eram como duas jóias flexíveis que tentassem fugir do seu cofre.

- Mamãe, olhe o que eu achei! - gritei, contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o mostrengo que ainda sonhava com o sol e com a vida.

- Planta, meu filho... Vai plantar... Planta no fundo do quintal, longe da cerca...

Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou.

O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele já me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo, experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem que embalasse nos braços o seu irmãos de leite. Até que, um dia, seguro da sua rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio e, todas as tardes, lhe subo ao galho mais empinado, onde, com o braço esquerdo cingindo o caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da "Chegança", que é, por esse tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba:

Assobe, assobe, gajeiro,
Naquele tope real...
Para ver se tu avistas,
Otolina,
Areias de Portugal!

Mão direita aberta sobre os olhos, como quem devassa o horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintas vizinhos, as vacas do curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio Santeiro, eu próprio respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a, como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas estacas das cercas velhas, enfeitadas de melão-são-caetano:

Alvíssaras meu capitão,
Meu capitão-general!
Que avistei terras de Espanha.
Otolina,
Areias de Portugal!

A memória fresca, e límpida, reproduz, uma a uma, fielmente, todas as passagens épicas, todas as canções melancólicas e singelas da velha lenda marítima com que o majestoso mulato Benedito Guariba, uma vez por ano, à frente dos seus caboclos improvisados em marujos portugueses, alvoroça as ruas arenosas de Parnaíba. O vento forte, vindo das bandas da Amarração, dá-me a impressão de brisa do oceano largo. O meu camisão branco, de menino da roça, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O cajueiro novo, oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido rolando diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de Espanha, e areias de Portugal.

Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona Páscoa berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais saudade. Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o estribilho "ípsilon", marcando sonoramente as seis horas. Os do sr. Antonio do Monte, ao longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o alto, olhando o milho de ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra, desço tristemente do folhudo mastro do meu cajueiro, sonhando com o oceano alto, invejando a vida tormentosa dos marinheiros perdidos, que não tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, à luz de um lampião de querosene, a lição do dia seguinte...

Aos treze anos da minha idade, e três da sua, separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa corre-lhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio.

- Adeus, meu cajueiro! Até à volta!

Ele não diz nada, e eu me vou embora.

Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em S. Luís, homem-menino, lutando pela vida, erijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: "Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças..."

Há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em que o Oceano, o Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado dos três é a Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras e costas, ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita, esgrime com os galhos furiosos, e não pode fugir, nem viajar... Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua idéia. E choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz?

Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco, mas ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e frutos de ouro pálido para as pipiras cinzentas. É um cajueiro moço, e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal.

Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste:

-Adeus, meu cajueiro!

O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a fragilidade do capitão Guliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo.

- Meu cajueiro, aqui estou!

Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem; ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia, modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos abraçam coqueiros, afogam laranjeiras que noivam, ou ultrapassam a cerca e vão dar sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem dono... Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco... Ao perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em baixo, a vasa e a podridão!

- Adeus, meu cajueiro!


(Memórias, 1933.)