sábado, 11 de setembro de 2010

MINHA IRMÃ E AS CARTAS (Maria Francisca dos Santos Lacerda)


MINHA IRMÃ E AS CARTAS


Quando vi aquele filme “Central do Brasil”, transportei-me à Rua São José, onde residi na minha infância. A personagem de Fernanda Montenegro (que grande!) escrevia cartas em nome dos remetentes que eram analfabetos. Uma espécie de ghost writer.  E esse, digamos, trabalho era a especialidade de uma de minhas irmãs.

Hoje, depois de tanto tempo, lembro o filme e minha irmã. Em verdade, nem sei por que isso hoje. Talvez o tempo chuvoso, aquela chuvinha fina, que parece doer nos ossos, quando se arrisca a sair ao relento, numa certa teimosia que às vezes acomete  alguns dos mortais.  E a melancolia costuma atacar nesses dias. E as lembranças correm soltas.

Minha irmã, como eu ia dizendo, escrevia cartas para aqueles pobres roceiros ou roceiras, de mãos calejadas pelo serviço na roça, plantando milho, feijão, mandioca e, mesmo assim, com tanta fartura de alimentos, viviam em eterna penúria. Todos analfabetos, uma pena. Eles sempre tinham alguém, algum amor, que morava longe. Ou mesmo um irmão, ou uma irmã, que ia ser empregada doméstica (que inveja do que ficava!...). Naquele tempo, ia-se muito para Sum Paulo trabaiá, pru que aqui num dá jeito não, moça. E o pior é que as cartas demoravam pra chegar ao endereço, porque, quase sempre, os entes queridos moravam em zona rural.

E minha irmã, na maior paciência, ia traduzindo em escritos os sentimentos daqueles seres sofridos, que apareciam com os olhos rasos d’água, pedindo com tamanha humildade, que não se podia conceber uma recusa. E olhe que ela fazia tudo de graça,  na maior alegria de poder ajudar. Tinha uma letra  miúda, redondinha, bonita que dava gosto. Quando ela lia o que havia escrito, ah! Como eles gostavam! Moça, ocê sôbe direitinho o que eu quiria dizê! E essa era a recompensa que ela esperava.

De vez em quando apareciam umas engraçadas.  Uma delas, de uma moça que havia deixado partir o namorado pra Sum Paulo, trabalhar na colheita de café. Ela disse tudo que queria dizer e minha irmã foi colocando no papel. No final, ela disse: quero um versinho, assim: Vai cartinha fechada, pur esse mundo sem fim; vai dizer a Manel ramo da cruz que nunca esqueci del. Nesse dia, nós duas, escondidas no quarto à noite, rimos a valer. Escondidas porque nossa mãe não admitia que ríssemos daquelas pessoas.  Mas sei que ela, também escondida de nós, ria, porque depois de muitos anos ainda se lembra dessas coisas e acha graça.

Outras eram tristes e demonstravam como aquelas pessoas eram rudes. Não por maldade ou premeditação, mas porque a vida as fizera rudes, submetendo-as aos maiores sacrifícios, tanto nos trabalhos com enxada e foice, como com as doenças, os vermes que eram muitos, em todos os lugares, porque era ridículo o número de cidades com saneamento básico. Quem precisava daquilo?

Uma vez, um senhor já sofrido pelos anos de vida e por toda a sorte de intempéries, pediu à minha irmã para escrever uma carta para um jovem lavrador que fora pra Sum Paulo trabaiá. Minha irmã, como sempre, perguntou o que ele queria que ela dissesse. Ele disse: Juão, tô iscreveno, pra dizê qui seu pai morreu e urubu cumeu. E minha mãe: Senhor Otílio, não diga isso! E ele: É perciso, pra ele aprendê a tumá cuidado. Não houve meio de minha mãe dissuadi-lo de seu triste propósito. Ficamos a imaginar se, de fato, acontecera aquela tristeza, ou se ele apenas queria passar um susto no filho que achava descuidado. Naquele dia, ninguém riu.

O mais interessante é que muitos deles voltavam com a resposta das cartas, porque não podiam lê-las. E minha irmã, de novo, era a intérprete daquelas garatujas que nem sei como ela conseguia fazer.

Certa feita, um senhor bem idoso veio trazer-lhe uma carta pra ler, uma resposta.  Era sim, uma resposta, e ele não entendia como ele havia escrito uma carta pro filho e outra pessoa respondia. Ele a duras penas conseguira ler o nome do remetente. Aliás, conseguira, não sei como, saber que aquele nome não era do seu filho. Era analfabeto, como todos que ali acorriam.

Minha irmã leu a carta baixinho. Não sabia como dizer para aquele senhor de cabelos ralos e tão branquinhos que pareciam capuchos de algodão que seu filho havia morrido. Sofrera um acidente na roça. Fora atropelado por um trator, daqueles bem grandões, e não fora medicado a tempo. Minha irmã acabou de ler e ficou em silêncio. Um silêncio constrangedor. E nós, na sala, esperando que ela dissesse algo, que ela rompesse o silêncio, o tempo passando e nós, em agonia, na compaixão daquele nosso vovô emprestado, a quem já dedicávamos algum carinho,  que nada falava, como se pressentindo que algo ruim acontecera. E foi ele quem primeiro falou, com as lágrimas a rolar: Ele morreu!

E ninguém teve coragem de dizer mais nada.

(Maria Francisca dos Santos Lacerda – outubro/2009)


(Fotografia: Andra Valladares)


Maria Francisca dos Santos Lacerda, mineira, reside no Espírito Santo desde 1992. Acolhida pelos capixabas, com título de cidadã Espírito-Santense, Cidadã de Vitória, e  condecorada com a medalha Maria Ortiz. Desembargadora Federal do Trabalho, aposentada, ex-presidente do TRT-ES, biênio 2003/2005, condecorada com a medalha de mérito pelo Tribunal Superior do Trabalho, na categoria Grande Oficial e do TRT-ES na categoria Grã Cruz,  mestre em Direito Processual Civil, pela UFES. Participou de diversas coletâneas da série “Poetas do Espírito Santo” e tem um livro (solo) de poemas: “Sal, pimenta e ternura”, estando com uma obra coletiva (juízes poetas) no prelo. Com o selo da LTr, tem artigos jurídicos publicados em revistas especializadas e um livro sob o título “Processo, prova e verdade”, do Mestrado, em parceria com 8 colegas,  com o capítulo “Prova científica e raciocínio do Juiz”, pela Editora Lumen Juris. Hoje, professora, advogada, membro do Conselho Consultivo da EJUD (Escola Judicial do TRT-ES) e membro da Academia de Letras Humberto de Campos (Vila Velha-ES).


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